segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A busca pelo desperdício zero


Pelo novo conceito de "economia circular", a ideia é convencer empresas a aproveitar todos os insumos da fabricação - tudo o que antes era descartado pode virar algo útil-Raquel Beer

Ellen Macarthur cresceu na cidade de Derbyshire, no interior da Inglaterra. A distância do mar não a impediu de desbravá-lo aos 4 anos de idade, quando começou a velejar com o barco de sua tia. Duas décadas depois, em 2005, a inglesa se tornou a mais rápida atleta a navegar, sozinha, pela circunferência da Terra. Ellen conta ter percebido em alto-mar que os recursos eram limitados; alimentos para uma semana, uma bateria com carga restrita e diesel suficiente apenas para alguns quilômetros. Essa percepção a inspirou: "A nossa economia global não é diferente. É totalmente dependente de materiais finitos". A constatação levou-a a criar, em 2010, a Fundação Ellen MacArthur. O objetivo é promover o que se chama de "economia circular", modelo pelo qual se tenta aproveitar todos os insumos utilizados na fabricação de um produto, sem produzir lixo. A diferença para a reciclagem tradicional é que, pelo método de Ellen, não existe — em última instância — desperdício (mesmo que a reciclagem possa ser incorporada ao processo). A organização passou a popularizar a economia circular, hoje adotada por gigantes da iniciativa privada como o Google e a Unilever.
O conceito ganhou força nos anos 60. A ideia veio do economista inglês Kenneth Boulding, em seu artigo "A economia da vindoura espaçonave Terra", no qual propõe a adoção de um modelo financeiro baseado em um "sistema ecológico cíclico". Na década de 70, o arquiteto suíço Walter Stahel apresentou à Comissão Europeia o relatório "O potencial de substituir força humana por energia", no qual apresentou a ideia do modelo em círculos, estimando seu impacto positivo na economia e na contenção de recursos. Stahel ainda cunhou a expressão "do berço ao berço" que faz referência ao método de produção de resíduo zero e é amplamente utilizada por especialistas da área. Entretanto, o conceito era até então restrito às teorias acadêmicas, com pouco uso prático.
Nos últimos cinco anos, a Fundação Ellen MacArthur mudou esse cenário ao incentivar a adoção da economia circular junto a empresas, universidades, governos e ONGs. A organização prega que o que hoje consideramos lixo é, na verdade, fonte de matéria-prima para novos produtos e, logo, uma oportunidade de negócios e de produzir de maneira sustentável. Ellen procura convencer companhias, em especial as do setor privado, a resgatar insumos de fabricação e reaver produtos para reaproveitar resíduos, em vez de jogá-los em lixões e aterros. São várias as maneiras de fazer com que o (antes) lixo vire algo útil: repará-lo para que volte ao mercado, com preço reduzido; resgatar partes para que sejam utilizadas em novos itens, ou para o reparo de outros produtos; ou, como último recurso, reciclar materiais como plástico e vidro.
A fabricante de carros francesa Renault, por exemplo, criou uma fórmula pela qual reaproveita 85% da estrutura de automóveis velhos ou danificados na fabricação de novos modelos ou para a venda de peças. Outra vantagem é que se economiza energia na fabricação, visto que, em vez de criar novas peças, é possível reutilizar as já feitas.
O viés sustentável, por si, não é o que atrai as empresas. A economia circular representa menores gastos, e maior aproveitamento de matéria-prima, para o setor privado. A americana Cisco tem um serviço de recuperação de itens usados por seus clientes. A cada ano, recolhe 12 000 toneladas de objetos eletrônicos da marca, dos quais 25% são restaurados para revenda, enquanto quase todo o resto é reciclado — apenas 0,2% é descartado. "O ideal é que um dia os próprios consumidores, dotados de aparelhos ligados à internet e interligados entre si, os chamados smart (em inglês, inteligentes), possam aplicar ideias de economia circular em suas casas", disse a VEJA o inglês Neil Ilarris, diretor de negócios sustentáveis da Cisco. Outro caso exemplar é o da H&M, multinacional sueca de vestuário. Em 2013, a empresa passou a promover um programa para que os clientes trouxessem roupas das quais quisessem se desfazer, em troca de um voucher de desconto. Todas as peças recebidas são encaminhadas para uma empresa especialista em recuperar tecidos. Do total, 60% são refeitas e revendidas como roupas de segunda mão; de 5% a 10% são reutilizadas em outros produtos; e o restante, a parcela mais danificada, acaba servindo para produzir peças para a indústria automobilística.
Relatórios da consultoria McKinsey & Company, em parceria com o Fórum Econômico Mundial, mostram que a adoção da economia circular pode gerar economia de 380 bilhões de dólares para a iniciativa privada Já no estágio de transição. Se ela passasse a ser amplamente utilizada, os cortes chegariam a 600 bilhões de dólares. Globalmente, ainda seriam poupados 700 bilhões de dólares por ano em matéria-prima. Por fim, a demanda por mão de obra para as fábricas faria com que, somente na Europa, 1 milhão de empregos fossem criados.
Na última semana, em apresentação no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, Ellen MacArthur divulgou um novo relatório íeito pela organização. No estudo "A nova economia do plástico" destaca-se que a produção desse insumo aumentou vinte vezes desde 1964 e deve quadruplicar até 2050. Porém, somente 5% desse material é reciclado, enquanto 40% vão parar em aterros e um terço é descartado nos oceanos. Estima-se que, nessa toada, em quarenta anos haverá mais volume de lixo do que de peixe nos mares. Uma forma de evitar esse futuro lastimável é inserir o plástico no conceito de economia circular: em vez de descartá-lo, reaproveitá-lo.
No Brasil, a transição da economia linear — aquela com a qual estamos acostumados, baseada no descarte do que não se utiliza — para a circular é ainda mais recente, Em setembro do ano passado, a Fundação Ellen MacArthur abriu no país sua primeira unidade fora da Europa. Por aqui, ela lançou o programa A Economia Circular 100, que procura estabelecer uma rede de empresas, universidades e governos que topem implementar projetos. No exterior, 70% dos integrantes são companhias de grande porte, uma tendência que se estabelece no Brasil. Entre os sete membros brasileiros figuram as filiais nacionais da Coca-Cola e da HP.
Há, ainda, iniciativas que ajudam essas empresas a se adequar à proposta. É o caso da paulistana WiseWaste, parceira da MacArthur. "Depois de o produto ser usado, ele continua no planeta, e não entendo por que não reutilizá-lo. Onde veem lixo, vemos dinheiro", resumiu o engenheiro Guilherme Brammer, fundador da WiseWaste. Entre os trabalhos da empresa está o reaproveitamento de uma resina presente em embalagens de suco. A matéria-prima é transformada em instrumentos musicais, doados pela marca Tang a escolas públicas. Em outro projeto, carcaças de computador são transformadas em cadeiras,
No Brasil, a implantação da economia circular pode ainda fomentar uma discussão benéfica. Atualmente, as empresas nacionais relutam em investir na reciclagem, pois o método — diferentemente do que se verifica em países ecologicamente mais inteligentes — acaba por deixar a produção até 35% mais cara, pela incidência de impostos extras a cada etapa de reaproveitamento. Na Europa, a Fundação Ellen MacArthur influenciou a Comissão Europeia a reverter situação parecida, dando vantagens tributárias às empresas que adotam a economia circular — entre outras políticas de incentivo. O mesmo poderia ser feito no Brasil.
Indo além da oportunidade de negócios, é claro que a economia circular também faz bem ao planeta — e combina com os recentes anseios ambientalistas. Como exemplo, hoje o mundo produz 1,3 bilhão de toneladas de lixo por ano, quantidade que deve aumentar para 2,2 bilhões na próxima década. Em teoria, esse total poderia ser quase zerado se todos implementassem o novo conceito de reaproveitamento. "A economia linear ainda é dominante porque se tem a impressão de que ela é mais barata que a circular. Enquanto essa visão não mudar, continuaremos a perder" disse a VEJA o inglês Paul Ekins, professor de energia e ambiente da University College London e especialista no tema. "O desafio é popularizar a ideia de que nada precisa ser descartado", concluiu. Com reportagem de Luiza Donatelli

Nenhum comentário:

Postar um comentário