Com a posse de Lula na Presidência da República, o PT arquitetou um plano audacioso para se perpetuar no poder. A ideia era usar a máquina federal, com seus cargos e orçamentos bilionários, para comprar o apoio de partidos, sem ceder um milímetro de terreno no avanço sobre as liberdades democráticas. Foi assim que nasceu o mensalão. Quando o esquema foi descoberto, Lula viu seu mandato ameaçado. Para afastar o risco de responder a um processo de impeachment, convidou o bom e velho PMDB, o eterno fiador, para se tornar sócio do PT no governo. Como prova de boa vontade, abriu aos peemedebistas as portas de setores estratégicos da administração – entre elas, as da Petrobras. O resultado dessa sociedade, formalizada há mais de uma década, recebeu o nome de petrolão, o maior escândalo de corrupção da historia do país.
Desde a deflagração da Operação Lava-Jato, as autoridades colheram depoimentos que indicam que a verba roubada da Petrobras financiou as campanhas presidenciais de Lula e de Dilma Rousseff, enriqueceu estrelas petistas, como o mensaleiro José Dirceu, e bancou a boa vida de políticos de diferentes partidos. Amigo de Lula, o pecuarista José Carlos Bumlai confessou às autoridades que repassou ao PT 12 milhões de reais que pegou emprestados no Banco Schahin. O valor foi usado para financiar a campanha do amigo e para comprar o silêncio de uma testemunha que ameaçava implicar o ex-presidente no enredo, ainda nebuloso, do assassinato do petista Celso Daniel, então prefeito de Santo André. Eis mais um caso típico em que uma mão sujou a outra. Idealizadores do assalto bilionário aos cofres da estatal, os petistas sempre tiveram o papel de protagonista nessa trama criminosa. Na semana passada, no entanto, os investigadores obrigaram o PMDB a assumir o centro do tablado, como beneficiário de um presidencialismo de coalizão, sustentado, literalmente, com dinheiro surrupiado dos cofres públicos.
Na nova etapa da Operação Lava-Jato, a Polícia Federal cumpriu 53 mandados de buscas e apreensão e atingiu em cheio os mais importantes caciques do PMDB, que disputam entre si o comando do partido e as benesses distribuídas pelo Palácio do Planalto a fim de impedi-los fazer oposição. O alvo principal da ação foi o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acusado de receber propina do petrolão, obstruir a investigação do caso e usar o cargo para constranger adversários. Houve busca e apreensão na residência oficial da presidência e na casa de Cunha no Rio de Janeiro. A Procuradoria-Geral da República também pediu ao Supremo que o afaste do mandato, o que só deve ser decidido em fevereiro. A nova fase da Lava-Jato recebeu o nome de Catilinárias, em referencia à série de discursos que o cônsul romano Marco Túlio Cícero fez, há mais de 2000 anos, para acusar o senador Lúcio Catilina de tramar para derrubar a República e assumir o poder: “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós esta sua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio?”.
Como se sabe, Cunha é a personificação do golpista para a presidente, especialmente depois de ter acolhido o pedido de impeachment contra ela. Dilma dedica o mesmo epíteto ao vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB-SP), que já tem um plano traçado – e em execução – para assumir o poder caso o impedimento dela seja aprovado pelo Congresso. Temer foi uma espécie de alvo oculto da Catilinárias, que fez busca e apreensão nos endereços de dois ministros do governo Dilma: Celso Pansera (PMDB-RJ), chamado pelo doleiro Alberto Youssef “de pau-mandado de Eduardo Cunha”, e Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), braço-direito do vice-presidente. Depois da ação dos policiais, Cunha repetiu a ladainha de que é vitima de vingança porque deu andamento ao pedido de cassação do mandato de Dilma. Já Temer negou que trabalhe para derrubar a mandatária. Outros peemedebistas alcançados pela PF pensam de forma diferente. Entre eles, o presidente do Senado , Renan Calheiros (PMDB-AL).
A Justiça negou busca e apreensão na casa do senador, mas autorizou os policiais a vasculhar a sede do PMDB de Alagoas, comandado por Renan, e a casa de Sérgio Machado, que dirigiu a Transpetro nos governos do PT graças à indicação do parlamentar alagoano, Machado é acusado de recolher propina para Renan, que, segundo um delator do petrolão, Nestor Cerveró, também embolsou pixulecos na Petrobras. Em público, o presidente do Senado rechaça as denúncias. Em privado, reclama do fato de Cunha e Temer terem ido com muita sede ao pote, principalmente ao patrocinar a instalação de uma comissão especial de maioria oposicionista para decidir sobre o pedido de destituição de Dilma. Enquanto os dois conspiram, Renan mantém a fé num acordo com a presidente e com Lula para que todos, petistas e peemedebistas, salvem seus mandatos, a sociedade partidária da corrupção e o projeto de poder. Na semana passada, Renan e Temer chegaram a bater boca em razão da divisão interna do partido. O vice chamou o senador de coronel. Este retrucou dizendo que o colega, quando comandou a articulação política do governo, estava preocupado com cargos, emendas e a cartilha do fisiologismo. Há debates em que os dois lados têm razão.
Os ânimos não estão exaltados à toa.
Está cada vez mais claro que, apesar das tentativas, as investigações em curso não serão detidas por acordos de bastidor, conchavos entre poderoso e juízes ou artimanhas processuais que fomentaram a tradição brasileira de impunidade. A Operação Lava-Jato avança a passos largos no encalço de cabeças coroadas da República. Horas depois da batida na casa de Eduardo Cunha, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por 4 votos a 1, manter preso Marcelo Odebrecht, dono da maior empreiteira do país. A sentença enterrou o sonho dos advogados de defesa de abrir uma temporada de soltura de empresários investigados no petrolão, principalmente daqueles que, se fecharem um acordo de delação premiada, poderão elucidar a cadeia de comando do esquema. Apesar da expectativa de políticos governistas de que ministros empossados recentemente libertariam os presos, em retribuição à nomeação deles para o STJ, o tribunal manteve na cadeia outros executivos de peso, como Otávio Azevedo, ex-comandante da Andrade Gutierrez. No Supremo, o rigor tem sido o mesmo. Na quinta-feira, o ministro Teori Zavascki até mandou soltar o banqueiro André Esteves, citado por terceiros como patrocinador de um plano destinado a impedir a delação de Cerveró. Zavascki, no entanto, negou o pedido de liberdade do ex-líder do governo no Senado Delcídio do Amaral (PT-MS), que foi preso em flagrante depois de ser gravado numa conversa em que vende influência no STF, promete tirar Cerveró da cadeia e ajudá-lo a fugir do país. Padrinhos de Cerveró enquanto ele esteve na Petrobras, Delcídio e Renan são acusados pelo antigo afilhado de receber propinas milionárias. Os dois políticos podem ser decisivo para o desfecho do caso nas searas judicial e política. Delcídio passará o Natal e o Ano Novo atrás das grades. Abatido e com crises de choro, está cada vez inclinado a contar tudo o que viu e ouviu, principalmente de Lula, desde que chegou ao Senado, em 2003. O senador petista representou o ex-presidente em tratativas de coxia com o empresário Marcos Valério, operador do mensalão, o pecuarista José Carlos Bumlai e executivos de construtoras beneficiadas com contratos superfaturados na Petrobras. A revelação de seus segredos é aguardada como a delação das delações.
Já Renan terá papel decisivo no processo de impeachment de Dilma. O STF derrubou o rito de tramitação definido por Eduardo Cunha e anulou a eleição para a comissão especial que analisará o caso, que graças ao presidente da Câmara, resultou num colegiado dominado por deputados favoráveis à destituição da mandatária. A eleição para a comissão terá de ser refeita em votação aberta – e não secreta, como ocorreu – e sem a participação de uma chapa avulsa oposicionista. Na prática, os lideres partidários indicarão seus integrantes, restando ao plenário ratificar ou reprovar os nomes escolhidos. Assim, aumentou significativamente a chance de o governo vencer esse novo round, que só será disputado em fevereiro, depois do recesso parlamentar. Até lá, Cunha, PSDB e DEM esperam convencer a população a fazer pressão pela cassação de Dilma. “Não se salva quem precisa de força política com esse balão de oxigênio dado por Corte Judicial”, criticou o ministro Gilmar Mendes, derrotado no julgamento. Por maioria, o plenário do STF entendeu ainda que a Câmara apenas autoriza a abertura de impeachment. Ou seja: o Senado pode ou não acatar a decisão dos deputados.
Também será dos senadores a palavra final sobre o afastamento da presidente do cargo enquanto a Casa não decide, em definitivo, sobre a perda de seu mandato. O poder deixa as mãos de Cunha e passa para as mãos de Renan. Dilma agradece e respira um pouco mais aliviada. No fim de julho, Renan recebeu Lula num café da manhã, em Brasília, do qual participaram senadores do PMDB investigados n Lava-Jato e Delcídio do Amaral. Depois de ouvir o ex-presidente José Sarney dizer que o juiz Sergio Moro havia sequestrado a Constituição, Lula sugeriu aos convivas um pacto destinado a deter a Lava-Jato. A meta era a salvação geral e irrestrita. O governo até tentou convencer Cunha a participar do acordo, prometendo a ele ajuda para se livrar das garras da Justiça e do Conselho de Ética da Câmara e cobrando, em troca, o arquivamento os pedidos de impeachment contra Dilma. Durante meses, o deputado e a presidente andaram de mãos dadas. Agora, trocam fogo cruzado sob os holofotes. Para resistir ao tiroteio, a presidente conta com Renan, que, por sua vez, conta com a presidente para diminuir o ímpeto dos investigadores sobre ele. As excelências ainda não entenderam. A Lava-Jato se tornou irrefreável. Nem o lado mais negro da força será capaz de derrotá-la. Como bem disse o ministro do STJ Jorge Mussi, ao votar pela manutenção da prisão de Marcelo Odebrecht: “Chega! Basta! Essa sangria precisa ser urgentemente estancada antes que seja tarde. Os limites da paciência e da tolerância já se esgotaram”.
Daniel Pereira é jornalista
*Fonte: revista Veja – Edição 2457 – de 23.12.2015.
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