domingo, 31 de janeiro de 2016

Autoritarismo do bem

“Eu não sei se a América Latina teve um presidente com as experiências democráticas colocadas em prática na Venezuela (…) Ninguém pode acusar aquele país de não ter democracia, poder-se-ia até dizer que tem excesso.”(Lula, 29/09/2005)
Paris é sempre inspiradora e em junho de 2013 um par de meses já havia se passado desde minha chegada à cidade, quando de norte a sul começavam a pegar fogo as manifestações por aqui. Acompanhei febrilmente a Copa das Confederações, admito, mas entre as partidas só dava cobertura da CNN na minha tevê, assim como pela internet fiz todo esforço possível para ficar atualizado.
Lembro-me muito bem, as tomadas aéreas não deixavam dúvidas sobre o peso histórico do momento, entretanto nenhuma delas causou em mim reação tão forte quanto as imagens de violência gratuita promovida por bandidos mascarados.
E foi justamente este sentimento de repúdio mesclado com algum tipo insondável de curiosidade mórbida que me guiou até a Place de la Nation, onde teria vez um protesto veiculado nas redes sociais por brasileiros residentes na capital francesa.
Sem surpresas, dei de cara com meia dúzia de imberbes decididos a empanar a realidade, exatamente como acontece hoje em dia em São Paulo. Quem sabe, até mesmo saudosos, suspirando por um passado revolucionário que não é seu, mas que, convenhamos, lhes foi introjetado com afinco.
Acima de tudo, porém, e este aspecto foi o que mais me alarmou, tratavam-se claramente de indivíduos autoritários, visivelmente incomodados com a heterogeneidade das demandas e a mistura de tipos tão comum em qualquer catarse popular que se preze. “Reaça, vaza desta praça!”, bradavam sem o menor constrangimento.
Corta.
Durante uma dessas manifestações recentes em São Paulo, cujo abre-alas alardeia “3,80 O POVO NÃO AGUENTA”, como se desemprego, recessão, e a gangrena nas contas públicas promovida pela corrupção fossem cosméticos, ocorreu o seguinte: lá pelas tantas um policial solicitou ao grupo responsável por obstruir uma das principais vias da cidade, sem a menor cerimônia ou aviso prévio, que liberasse o corredor de ônibus ao transporte público e ambulâncias.
Deu-se então o irritante périplo, idas e vindas de uma menina visivelmente comovida pela instantânea notoriedade, sou a nova Sininho, sou a nova Sininho, sou a nova Sininho, talvez tenha repetido para si até solenemente divulgar o veredicto. Nada feito para o cidadão que voltava para casa, tampouco ao necessitado de urgente atendimento médico.
Corta.
Rio de Janeiro, fim do ano passado, Chico Buarque passeava pelo Leblon com amigos quando foi interpelado por um grupo cobrando seus posicionamentos políticos. O fato causou comoção nacional, um gênio da musica, além de tudo “senhor de 70 anos”, fora vítima de uma agressão abominável.
Terça passada, Porto Alegre, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul recebia a visita do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) para um encontro do seu partido quando manifestantes de um certo Levante Popular da Juventude, aos gritos de “homofóbico”, “racista” e “fascista”, decidiram polvilhá-lo com purpurina rosa enquanto concedia uma entrevista.
Corta.
Novamente junho de 2013, Brasília, arredores do estádio Mané Garrincha. Clima de festa por um lado, com a seleção estava prestes a fazer sua estréia na Copa das Confederações, e apreensão pelo outro, não bastasse a retórica estapafúrdia da tarifa zero, o slogan “não vai ter Copa” pretendia ser levado a sério.
Policiais fizeram um cordão de isolamento em torno do estádio para proteger os torcedores e filtrar quem estava com ingresso, estratégia esta que, diga-se, é adotada em todos os eventos de mesmo porte pelo mundo, e mesmo assim os manifestantes trataram de furar o bloqueio por mais de uma vez.
A cena que ecoa até hoje é a de uma manifestante, desnecessariamente caracterizada de palhaça, assoprando bola de sabão a poucos centímetros do rosto de um policial estático.
Corta.
Não vou mentir, testemunhar uma juventude tão imbecilizada como a atual é frustrante. Os mais antigos com toda certeza devem engatar um bocejo daqueles ao ler estas palavras, afinal também em outras épocas os jovens marcaram sua presença pela mistura de ignorância com prepotência. Pode ser, mas eu também não tenho saída.
Quero dizer, se estou fadado a viver o hoje, só me resta lamentar por quem jamais teve tanta oportunidade para aprender com o passado e ainda assim se deixa levar por ensinamentos reconhecidamente falidos.
O pior de tudo, porém, é constatar uma tirania pré-absolvida pairando sobre nós, especialmente quando se tratam de inimigos do ideário vigente. Um rolo compressor amoral já desinibido, inequivocamente intolerante, capaz até mesmo de deturpar a democracia quando se trata de defender os seus.
Corta.
Mario Vitor Rodrigues
Mario Vitor Rodriguesé escritor, apaixonado por gastronomia, futebol, séries e cinema. Já morou em Nova Iorque, Paris e, após uma temporada em Milão, está de volta ao Rio para finalizar seu próximo romance pela Nova Fronteira. Sempre no twitter @mvitorodrigues

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